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Com um sistema tributário complexo, o Brasil, como integrante do G20, é um dos 140 países que devem se adequar ao imposto mínimo global, em vigor desde 1º de janeiro. O tema foi debatido no Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação (Caeft), da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), coordenado por Luis Eduardo Schoueri, titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.

O imposto, que visa acabar com vantagens tributárias de multinacionais no exterior, desestimulando a evasão de recursos para paraísos fiscais, é uma iniciativa da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e parte do Pillar II, programa de implementação dessas medidas.

Ele prevê aplicar imposto com alíquota mínima de 15% sobre a renda das multinacionais nas regiões onde atuam, e hoje sete jurisdições (União Europeia e Reino Unido entre elas) já tributam pelo modelo.

“A ideia é estabelecer um piso para a competição fiscal internacional”, explicou o advogado Ricardo André Galendi Jr., doutor em Direito Tributário pela Universidade de Colônia (Alemanha). Sua tese de doutorado foi baseada na justificação e estrutura das Globe Model Rules (regras globais) relativas ao Pillar II

Assim como os Estados Unidos e a China, o Brasil ainda não tem legislação própria para aplicar o tributo, cujas regras criam incentivos a outros países (“se você não tributar, eu tributarei”). Para seguir o caminho dos países que já adotaram a alíquota mínima global, segundo o advogado, é preciso traçar um paralelo com o sistema tributário vigente, pensando também nos interesses brasileiros.

“Nessa história, o país não só é um exportador de capital em áreas como commodities, mas também é importador por hospedar grandes montadoras, indústrias farmacêuticas e empresas de tecnologia.” 

Galendi Jr. explicou as três regras básicas do modelo e as inseriu no contexto do Brasil. Olhando para a IIR (ou Income Inclusion Rule, regra para garantir o Imposto de Renda mínimo de 15%), por exemplo, pelo sistema tributário abrangente é difícil enxergar onde cobrar algo ainda não cobrado: lucros no exterior já são tributados anualmente pelas regras de Tributação Universal (TBUs), disse.

“Ele é mais uma oportunidade de rever o regime já existente, para torná-lo um sistema tributário mais competitivo, do que pelo eventual interesse arrecadatório.”

Já a UTPR (Undertaxe Profits Rule, ou regra dos lucros sub-tributados), que permite que outros membros do grupo tributem impostos complementares de subsidiárias, é uma regra controversa segundo o advogado: pode criar conflitos com tratados de outros países.

“O Brasil não tende a ser vanguardista nesse sentido, deve seguir a tendência de esperar para ver como outros países adotam. Não é uma discussão para agora.”

Finalmente, a grande candidata à adoção imediata pelo Brasil seria a QDMTT (Qualified Domestic Minimum Top-up Tax, ou regra do imposto adicional doméstico), que atua para que os efeitos de adoção das regras por outros países sejam anulados. Ou, se alguém tributar lucros auferidos no Brasil, que seja o próprio Brasil. “É uma decisão que depende do sucesso do Pillar II, e ele avança a passos largos.”

Galendi Jr. disse que a única preocupação em adotar a QMDTT é a necessidade de a regra estar perfeitamente em linha com o que a OCDE está defendendo. “Quanto mais diferenças e divergências tiver, mais complicação vai existir. São tributos extremamente complexos, mas não servem para fins arrecadatórios, e sim para anular a IIR ou QTPR adotadas por outros países, só pra isso.”

O CASO DA UE E O ‘ATRASO’ BRASILEIRO

O Pillar II não é apenas sobre lucros pouco tributados em paraísos fiscais, é sobre lucros pouco tributados em todas as jurisdições. E ele envolve uma distorção estrutural e de correção do sistema de tributação de pessoas jurídicas, que criam um problema de sustentabilidade da receita fiscal. 

A definição, de João Félix Pinto Nogueira, vice-presidente acadêmico da IBDF (autoridade mundial em tributação transfronteiriça nos Países Baixos), e professor da Universidade Católica de Portugal, que também palestrou na reunião do Caeft, mostra o porquê da rápida implantação pela União Européia. 

E também os impactos que isso pode gerar no Brasil: com diretiva aprovada em tempo recorde em 2022 (seis meses), sete países do continente europeu estão com planos de implementação definidos, dois em fase de consulta pública, quatro já têm projetos e propostas de lei e, a maioria, 22 países, já estão com o Pillar II em vigor. Do total, pelo menos 18 deles aplicam sua tríplice modalidade de regras. 

“Qualquer empresa brasileira subsidiária na Europa ou com sede no Brasil será afetada em todo o lucro geral a partir de 1º de janeiro de 2024”, alertou o especialista, que lembrou que o continente avançou por uma decisão política e pelo compromisso de criar um ambiente mais profícuo em termos de legislação. 

Para demonstrar o impacto disso no Brasil, ele citou dados não-oficiais da Receita Federal, que apontam 1.190 multinacionais não-brasileiras por aqui como entidades constituintes que podem ser impactadas pelo Pillar II. Micro e pequenas empresas também podem sofrer esse impacto. “Um pequeno negócio que vende softwares em São Paulo pode ser afetado, e não de acordo com o lucro contábil.”

Em sua avaliação, sem nenhum plano definido em relação à medida, o Brasil pode ficar em desvantagem em termos tributários. “O país tem muitas relações comerciais com esses 22 países, e por isso já deve sofrer essa consequência”, alertou. “Ou melhor, ele escolheu sofrer essa consequência.” 

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Nogueira, Schoueri e Galendi Jr. debateram as consequências da adoção da alíquota mínima global para o Brasil. (Foto: César Bruneli)

Para mudar essa situação no curto-médio prazo, Nogueira citou algumas opções. Uma é não fazer “nada” sobre atividades que têm lugar em solo brasileiro, porque o país “aceitou que assim fosse.” 

Ou, voltando à questão da revisão, promover uma reformulação dos atuais incentivos (como do regime de Lucro Presumido, do Simples, entre outros) e de requisitos das Zonas Francas, e criar incentivos fora da tributação da renda ou revisar convênios, como o tax sparing (crédito de imposto pago na fonte).

E, ainda, implementar o quanto antes o Pillar II de forma direta e mais qualificada via QMDTT, e as outras regras parcialmente, se possível, para evitar perda de receitas tributárias para outras jurisdições. 

“Em nível de política fiscal, não existe razão para que nenhuma jurisdição não aplique essa regra (que anula as adotadas por outros países)”, destacou. “Não exige mais que 30 minutos de discussão a partir de uma linha jurisprudencial. E é mais justo do ponto de vista empresarial.”

O professor reforçou ainda que, nesse estágio, o Brasil não pode evitar possíveis efeitos sobre essa escolha, nem limitações às opções domésticas, além da necessidade de se alinhar às regras da OCDE.

“Se de um lado temos Zonas Francas, de outros temos empresas altamente tributadas, e isso precisa ser levado em consideração. Esse impacto pode ser reduzido, se for compensado com outras idênticas.”

Ao citar a “hiperconstitucionalização” do Direito Tributário por aqui, Nogueira destacou alguns fatores que são particularmente relevantes para implantação do conceito do Pillar II, como a retroatividade, o respeito à legalidade, isonomia tributária e a QDMTT como regra primária. “Para o Pillar II ser um passo na direção correta, é preciso uma reflexão urgente sobre o tema no Brasil”, alertou. 

FIM DOS INCENTIVOS FISCAIS?

A advogada e contadora Belisa Ferreira Liotti, que palestrou no evento do Caeft de forma on-line, direto da Áustria, deu “um passo atrás”, conforme disse a doutoranda, pesquisadora e professora-assistente em Direito Tributário na Universidade de Viena, para apontar como o cálculo do imposto complementar ou adicional (o top-up tax) pode fazer o Brasil ser afetado pelas regras do Pillar II.

Ela deu exemplo, a princípio, de uma multinacional que se encaixe nas regras (volume de negócios superior a 750 milhões de euros), mas atue em uma jurisdição em que o imposto seja inferior a 15%, considerada de baixa tributação, criando a necessidade de calcular o imposto complementar. 

No caso do Brasil, que obviamente não se encaixa por tributar a renda com uma alíquota nominal de 34%, não seria um problema iniciar a aplicação do Pillar II, lembrou Belisa. Mas aqui há certas deduções e incentivos (como Juros de Capital Próprio, ágio, Lucro Presumido, Lei do Bem e incentivos fiscais, como os da Sudene e Sudam), que seguem regras próprias e podem reduzir a tributação efetiva. 

Aí surge a questão: se o Pillar II tem como objetivo acabar ou reduzir a competição, ou a guerra fiscal entre os países, seria então o fim dos incentivos fiscais no Brasil e no mundo? 

“A resposta não é fácil e nem uma tarefa simples. O Pillar II não proíbe que os países adotem os incentivos. No entanto, eles podem ser afetados pela maneira como a regra opera, e como o cálculo do imposto mínimo é conduzido”, destacou, citando como exemplo análises de cálculo dessa alíquota. 

Como o cálculo dos Lucros Excedentes com base no Lucro Contábil e a Exclusão de Rendimentos com Base na Substância (ou SBIE, na sigla em inglês), que pode ser em torno de 8% a 5% para ativos tangíveis, e de 10% a 5% das despesas com a folha de pagamento, para fins de cálculo do Pillar II, explicou.  

Simplificando, para uma empresa brasileira com subsidiárias e lucro excedente de 10 milhões, o imposto complementar sem SBIE seria de 500 mil (alíquota de 5%). Com SBIE, seria de 375 mil (3,75%). Em resumo, há um menor impacto sobre incentivos fiscais que favoreçam a substância. 

“O Pillar II não quis interferir tanto, mas terá menor impacto sobre incentivos fiscais (e para evitar transferência de lucros para países de baixa tributação) com essa exclusão com base na substância. E favorece quem garantir que tenha presença física na jurisdição: estes serão menos impactados.”

E o que isso significa para o Brasil, seguindo essa lógica? Segundo Belisa, ainda há incerteza, mas pode causar efeitos mistos nas empresas brasileiras: impacto menos significativo para empresas em regiões de incentivo, e maior impacto e desincentivo a investimentos em tecnologia e em ativos intangíveis.

Assim como já disseram os outros dois especialistas, também pode levar a uma revisão do sistema vigente – neste caso, o de incentivos e manutenção, ou adoções de atividades menos impactadas pelo Pillar II, como a depreciação acelerada e créditos fiscais, entre outros.

“No futuro, acredito que o papel do Brasil é revisar esses incentivos, pensando que alguns deles podem passar mais ilesos pelo Pilar II com base na substância”, destacou a especialista. “O país provavelmente deve adotar essa nova prática, e manter outros [incentivos] para diminuir os impactos para empresas”, concluiu. 

COMO FUNCIONA 

Pelas regras do imposto mínimo global, que é baseado em dois pilares, os grupos multinacionais com volume de negócios superior a 750 milhões de euros devem recolher, a título de imposto sobre a renda, uma alíquota efetiva de pelo menos 15% em todas as jurisdições em que atuam.

Também visa garantir que rendimentos pagos por grandes empresas cheguem aos países nos quais geram receitas, e não onde têm sede social, limitando, assim, práticas controversas de “vantagens fiscais.” 

A estimativa da OCDE é que o imposto mínimo global aumente, em todo o mundo, a receita tributária anual em até 9% – o equivalente a US$ 220 bilhões em 2023. Segundo o professor Nogueira, em janeiro de 2024 o montante reduziu um pouco, para algo em torno de US$ 155 milhões e US$ 192 milhões.

“Mesmo assim, ainda é bastante substancial, e tem um impacto estrutural nos sistemas fiscais muito significativo em termos financeiros.”

IMAGEM: Freepik 

FONTE: Diário do Comércio