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Na conjuntura atual do sistema tributário-previdenciário brasileiro, uma mudança abrupta foi observada com a recente decisão proferida pelo ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, em 25 de abril de 2024, suspendendo os efeitos da Lei 14.784/2023, que prorrogou até 31 de dezembro de 2027 a vigência da contribuição previdenciária sobre a receita bruta em substituição à folha de salários.

A decisão, proferida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.633, provocou um estado de limbo jurídico e econômico ao, em tese, sujeitar os contribuintes a um cenário de angústia e incerteza ante a iminente obrigação de recolhimento da contribuição patronal no dia 20 de maio de 2024, sem o benefício da desoneração previamente concedido, consoante já anunciado pela Receita Federal publicamente.

O presente artigo, desviando-se da discussão acerca do mérito da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), foca-se primariamente nos efeitos práticos emergentes dessa suspensão, e na análise das possíveis ofensas à segurança jurídica e à anterioridade.

Esta exposição bifurca-se em duas partes essenciais: (1) a primeira seção deste estudo contextualiza a implementação da CPRB e sua adoção pelo tecido empresarial brasileiro, de forma a compreender as motivações em torno do conflito instaurado com a ADI n° 7.633; e, (2) na segunda seção, o foco migra para o risco e imprevisibilidade ocasionados pela decisão proferida pelo ministro Cristiano Zanin em contraponto aos princípios que norteiam a segurança jurídica, inclusive sob à ótica da anterioridade, diante da imediata suspensão da vigência da desoneração da folha e a consequente majoração abrupta de encargos tributários sobre os contribuintes.

Capítulo 1: Do breve retrospecto da CPRB até a ADI 7.633

A desoneração da folha de pagamentos surgiu como uma política inovadora no cenário fiscal brasileiro em 2011, sob a égide da Medida Provisória nº 540, convertida na Lei nº 12.546. Este regime fiscal consiste na substituição da contribuição incidente sob a alíquota de 20% sobre a remuneração paga a segurados empregados, avulsos e contribuintes individuais pela fixação de uma contribuição sobre a receita bruta em percentuais que variavam entre 1% e 4,5%.

A medida, que alcançava inicialmente 17 setores (e.g., construção civil, tecnologia da informação e comunicação, têxtil, confecção e vestuário, calçados, entre outros), passou a ter caráter facultativo para as empresas apanhadas pela medida com o advento da Lei 13.161/2015, devendo o sujeito passivo optar por um ou outro regime no recolhimento da contribuição correspondente ao mês de janeiro de cada ano, opção essa irretratável para todo o ano-calendário.

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As razões de extrafiscalidade que justificaram a criação deste regime foram (1) o combate à criação de pessoas jurídicas fraudulentas para frustrar a aplicação da legislação trabalhista e previdenciária e (2) a implantação e ampliação de empreendimentos e melhoria da atividade econômica com a redução de custos de produção para as empresas do setor.

A desoneração da folha estava prevista para acabar em 31 de dezembro de 2023, mas por meio do Projeto de Lei n° 334, de 2023, houve a tentativa de prorrogação do benefício. Em novembro de 2023, a tentativa de prorrogação encontrou um obstáculo majoritário quando o governo federal, apontando um vício de inconstitucionalidade, vetou a proposta, alegando que a renúncia de receita não vinha acompanhada da necessária demonstração de impacto orçamentário-financeiro, conforme exigido por dispositivos constitucionais e pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) [1]. Porém, no ápice de um aparente confronto entre os poderes Executivo e Legislativo, o Congresso Nacional contrariou o veto presidencial ao promulgar a Lei 14.784 em dezembro de 2023, prorrogando o benefício da desoneração até 2027, e estendendo-a inclusive a prefeituras, mitigando os encargos de municípios menores.

Com a vigência da desoneração no recolhimento da contribuição referente a janeiro de 2024, muitos contribuintes acabaram optando pela CPRB em detrimento da folha de pagamentos, opção essa irretratável para todo o ano.

As respostas que o governo federal procurou dar no contexto da “queda de braço” com o Poder Legislativo se deu pela edição de Medidas Provisórias (1.202/2023 e 1.208/2024) dispondo sobre uma “reoneração gradual” até que se retornasse ao regime anteriormente existente. Esta estratégia do governo gerou um alvoroço e opiniões divididas entre o Congresso e os setores econômicos afetados, apontando para um agravamento do desemprego e previsibilidade por um lado e uma necessidade de ajuste fiscal por outro.

Vencido, o governo federal recorreu ao Poder Judiciário por meio da propositura da ADI n° 7.633, apresentada pela Advocacia-Geral da União representando o presidente da República, solicitando a suspensão de partes da lei que mantém a desoneração da folha até 2027. Em seu bojo, foi deferida a medida cautelar pelo ministro Cristiano Zanin, que vislumbrou plausibilidade nas alegações de inconstitucionalidade, inclusive por violação às disposições da chamada “PEC do teto de gastos” estabelecido a partir da Emenda Constitucional nº 95/2016.

A reação a essa medida judicial foi imediata e significativa. Os setores empresariais, já optantes, no exercício de 2024, pela contribuição pela receita bruta (CPRB), sentiram-se impactados por essa interrupção abrupta, alertando para um possível aumento no desemprego e uma contração na atividade econômica. A judicialização da desoneração da folha, para além de expressar uma crise entre os poderes Executivo e Legislativo (e também Judiciário), engendra um aparente descaso para com os contribuintes, que são os mais afetados em termos práticos, já que a concessão da medida cautelar, nos termos colacionados pelo ministro Cristiano Zanin, como será visto a seguir, revela um desrespeito à segurança jurídica e da própria jurisprudência do STF.

Capítulo 2: segurança jurídica e previsibilidade no sistema jurídico

No contexto do sistema jurídico brasileiro, a segurança jurídica é amplamente reconhecida como um “sobreprincípio” fundamental, conforme discutido por Paulo de Barros Carvalho [2] e Humberto Ávila [3]. De acordo com esses autores, a segurança jurídica é entendida como uma espécie de “norma das normas”, que não apenas fundamenta a validade das demais normas, mas também instrumentaliza sua aplicação, inclusive em casos concretos.

É pressuposto, no contexto da segurança jurídica, que o Direito seja previsível e confiável. Os contribuintes devem ser capazes de confiar no ordenamento jurídico ao tomar decisões baseadas em uma normatização vigente. Qualquer alteração ou mudança de entendimento que não existisse no momento da prática dos atos pode trair essa confiança, levando à imprevisibilidade e intensificando o que Ulrich Beck denominou de “sociedade de risco”.

A expressão “sociedade de risco”, cunhada por Ulrich Beck [4], descreve a era contemporânea na qual os perigos enfrentados pela humanidade são resultado dos efeitos colaterais das ações humanas, o que acaba por gerar uma imprevisibilidade quanto às consequências das medidas adotadas por terceiros e implicações na esfera privada do afetado (leia-se: contribuinte) em decorrência dessas ações. Essa imprevisibilidade decorre do avanço científico e tecnológico, que, embora planejado por especialistas, muitas vezes gera consequências não previstas e negativas. Para mitigar esses riscos, as normas devem ser minimamente calculáveis e previsíveis, permitindo que os contribuintes prevejam os efeitos futuros de suas ações e realizem suas escolhas.

A modificação abrupta de todo um regime tributário a partir da decisão prolatada pelo ministro Cristiano Zanin e os seus sensíveis impactos exemplifica a importância da previsibilidade no Direito e põe à tona os danos decorrentes de sua inobservância. Em um intervalo inferior a 30 dias, os contribuintes passaram a contar com uma estrutura de custos totalmente distinta daquela para a qual haviam se programado diante dos efeitos imediatos da decisão proferida.

Isso não quer dizer que não pode haver mudança de entendimento e/ou mudança legislativa; fato é, para que se afaste a imprevisibilidade diante de eventual aumento da carga tributária, o próprio ordenamento jurídico, por ser autopoiético — isto é, o próprio Direito se organiza e promove mecanismos para reprodução e mudanças, como bem preceituava Luhmann [5] —, oferece instrumentos para mitigação do risco, a saber: a anterioridade.

Assim sendo, no sistema jurídico brasileiro, a anterioridade pode ser enquadrada tanto como princípio jurídico vinculado à segurança dos direitos individuais ou quanto uma técnica de imposição tributária. Para Humberto Ávila, em razão da distinção entre princípios e regras não ser tão categórica, a anterioridade exibe simultaneamente as características dos princípios e das regras, como se pode observar:

aplicado como regra se o aplicador entendê-lo como mera exigência de publicação da lei antes do início do exercício financeiro da cobrança, ou como princípio se o aplicador concretizá-lo com a finalidade de realizar o valor previsibilidade para proibir o aumento do tributo quando o contribuinte não tenha condições objetivas mínimas de conhecer o conteúdo das normas que estará sujeito a obedecer, ou para postergar o reinício da cobrança de tributo cuja isenção foi revogada no curso do exercício financeiro [6].

Analisada a questão sob este prisma, quer-nos parecer que a segurança jurídica foi violada sob, ao menos, duas perspectivas. Em uma primeira, quer nos parecer que a decisão cautelar proferida entra em testilhas com o que restou decidido no julgamento do Tema 881 pelo STF, que, ao concluir que a decisão declaratória de constitucionalidade do tributo tem o condão de “quebrar a coisa julgada” firmada em favor do contribuinte em sentido diverso está sujeita à observância da anterioridade. A premissa foi a de que a anterioridade foi considerada um princípio constitucional que deve ser respeitado para proteger os contribuintes de surpresas no campo tributário, como sói acontecer com a mudança do plano normativo aplicável ao contribuinte por decisão judicial, privilegiando-se a estabilidade do sistema jurídico.

Sob outro ângulo, e diversamente do que concluiu o Superior Tribunal de Justiça quando afirmou sob o prisma infraconstitucional que a irretratabilidade da opção pela CPRB se aplicava apenas ao contribuinte, mas não ao Fisco, diante da revogação desta sistemática no curso do ano-calendário, a segurança jurídica restará melhor protegida pela corte se modulados os efeitos da decisão cautelar a fim de que produza efeitos apenas a partir do ano subsequente.

A opção ânua guarda melhor paralelo com o ano fiscal das empresas e a respectiva programação dos custos do ano (o chamado budget). A adoção de um calendário diverso daquele que foi considerado pelas empresas na distribuição de seu orçamento anual levará, inevitavelmente, a um desajuste desta mesma programação, levando a cenários dos mais diversos. Não é imagético que, para fazer frente aos novos custos tributários, os empresários tenham de adiar investimentos, promover demissões ou contrair dívidas para honrar suas obrigações, o que recomendaria a modulação dos efeitos da decisão proferida para que possam continuar a recolher a CPRB até o final do ano, em consonância com sua programação econômico-financeira projetada no início de 2024,

Considerações finais

Para além da questão do mérito, fato é que a decisão proferida pelo ministro Cristiano Zanin, no contexto da ADI 7633, trouxe à tona questões cruciais sobre a segurança jurídica e a previsibilidade no ambiente tributário brasileiro, especialmente para os contribuintes beneficiados pela Lei n° 14.784/2023. Estes contribuintes realizaram um juízo de previsibilidade no início do exercício financeiro, ajustando suas estratégias de tributação com base no regime então vigente e em suas condições econômicas, seja optando pela Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) ou pela Contribuição Previdenciária sobre a Folha de Salários (CPP).

No entanto, a decisão do ministro Cristiano Zanin surpreendeu os beneficiários pela desoneração, subvertendo suas expectativas e gerando riscos, com o potencial de prejudicar a geração de emprego, renda e desenvolvimento dos setores até então beneficiados. Em um esforço para manter a segurança jurídica do sistema tributário e mitigar riscos, seria fundamental que, antes de adentrar o mérito da questão em plenário virtual, houvesse uma revisão da decisão para respeitar a anterioridade. Esse, aliás, é o entendimento da própria jurisprudência do STF.

Até o momento, sabe-se que os contribuintes beneficiados pela desoneração se articulam em torno de medidas visando mitigar os danos, especialmente, a judicialização do tema em primeira instância.

Ainda que o cenário seja incerto, é fundamental que o operador do direito tenha ciência de que o sistema jurídico deve proporcionar a busca pela segurança jurídica e pela estabilidade, com o fim de promover um ambiente de negócios saudável e para garantir o respeito aos direitos constitucionalmente assegurados aos contribuintes.

Fonte: Conjur, autoria de:


[1] Mensagem n. 619, de 23 de novembro de 2023. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vet/VET-0619-23.htm. Acesso em 30.04.2024

[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p.208.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014

[4] BECK, Ulrich. La sociedad dei riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e MarÍa Rosa Borras. Barcelona: Paidós, 1998

[5]LUHMANN, Niklas. Sociologia dei rischio. Tradução de Giancarlo Corsi. Milano: Bruno Mondadori, 1996.p.233.

[6] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 34.