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O Projeto de LC 68/24, que pretende regulamentar a EC 132/23, que alterou o capítulo da tributação do consumo no país como parte da Reforma Tributária há tanto tempo aguardada, trouxe inúmeras inovações.

Muitas delas surpreendem por não se basearem na experiência internacional e, inclusive, contrariando a prática da maioria dos integrantes da OCDE e, principalmente, do Mercado Comum Europeu. Tais inovações são apresentadas por seus autores como medidas que permitirão ao Brasil apresentar o IVA mais moderno do mundo.

Essa expectativa revela a confiança de que tudo irá funcionar como planejado, embora a profundidade e a complexidade das mudanças introduzidas possam gerar dúvidas sobre os resultados de algumas delas. 

Sinceramente, espero que estejam certos, embora considere que sejam legítimas as preocupações de muitos, entre os quais me incluo, de que as razões pelas quais essas medidas não são adotadas pela maioria dos países possam ser fundamentadas.

Isso porque o impacto da maioria dessas inovações sobre a economia, as empresas e o emprego não pode ser avaliado a priori, por mais sofisticados que sejam os trabalhos econométricos apresentados.

Essas projeções não conseguem captar as reações dos agentes econômicos frente às mudanças. Em uma economia de mercado, apesar do alto grau de intervencionismo das propostas, os agentes econômicos reagem às mudanças de forma imprevisível.

Uma das inovações que contrariam a experiência internacional é a da tributação pelo IVA dos serviços financeiros e de seguros. Esse tema foi muito discutido na OCDE e na Comunidade Europeia, sem que se chegasse a uma conclusão definitiva. Pesquisa realizada pela OCDE entre os países integrantes, embora houvesse grande interesse nessa tributação devido à perspectiva arrecadatória que a medida poderia apresentar, não levou a Organização a recomendar sua adoção. Os países da Comunidade Europeia não praticam esse tipo de tributação. É verdade que nessa pesquisa surgiram muitas propostas no sentido de viabilizar a cobrança, mas não foram suficientes para mudar a orientação da OCDE e da Comunidade Europeia.

A esse respeito cabe destacar o que diz o Relatório da OCDE sobre essa questão:

“A isenção de IVA dos serviços financeiros, em particular, é objeto de debate frequente entre jurisdições, como mais recentemente na UE. Num documento recente (GFV N°087 de março de 2019), a Comissão Europeia lembrou que as regras de isenção de IVA da União Europeia para serviços financeiros e de seguros não acompanharam a evolução nestes setores, o que torna estas regras cada vez mais complexas e difíceis de se aplicar na prática. Isto levou ao aumento das taxas de litígio, à incerteza jurídica e a elevados custos administrativos e regulamentares. Estas regras também são interpretadas e aplicadas de forma inconsistente entre os Estados-Membros, conduzindo a distorções da concorrência na UE. A Comissão Europeia lançou, portanto, uma consulta pública em fevereiro de 2021, cujo resultado foi publicado em setembro de 2021 (Comissão Europeia, 2021[10]). As conclusões desta consulta mostram que, embora a grande maioria dos inquiridos considere que a isenção do IVA ainda é necessária, há necessidade de clarificação e de maior harmonização em toda a UE. O surgimento de “fintech” e de novos produtos e serviços, como moedas virtuais e outros criptoativos, levanta novas questões para os regimes de IVA, nomeadamente à luz das regras existentes para o tratamento do IVA dos serviços financeiros (OCDE/G20, 2020[11 ]).”

A principal razão pela qual não se tributa os serviços financeiros pelo IVA é que o crédito tem que fluir da forma mais eficiente possível, pois sua função é irrigar a economia e potencializar a realização dos negócios. Qualquer medida que possa dificultar o exercício dessa função, ou encarecer o crédito, acaba prejudicando o funcionamento da economia.

Qualquer aumento da burocracia que represente custos, será automaticamente repassado às taxas de juros.

Querer diferenciar as operações de crédito, seja para o ativo fixo, para a produção ou para financiar a venda é absolutamente impossível. Só quem nunca assistiu a um empresário avalizar promissória, respondendo com seu patrimônio pessoal para pagar seus funcionários, pode subestimar a importância do crédito para as empresas, especialmente as menores.

O relatório da OCDE aponta, também, que o “Split Payment” – ou o pagamento do tributo pelo cliente no ato da compra -, embora eficientes do ponto de vista da arrecadação, é válido apenas para produtos ou situações específicas, mas não para uso generalizado, por criar muita burocracia, tanto para o fisco como para os contribuintes, além de afetar o capital de giro das empresas.

Se nós imaginarmos a burocracia do Split Payment com pagamento do imposto operação por operação e combinarmos com aumento da burocratização do crédito, seguramente teremos muitas dificuldades para as empresas menores, ao invés da simplificação prometida.

Se nós somarmos a isso o período de transição, com a convivência dos dois sistemas, o novo e o velho, por um longo período, a carga burocrática das empresas, as mudanças constantes dos preços relativos com a redução de um tributo e aumento de outro, além dos impactos setoriais, é difícil estimar o resultado líquido, não apenas para o setor privado, como para os entes federativos. Neste caso, para a elaboração dos orçamentos, já dificultada com a passagem da tributação da origem para o destino.

Outro ponto polêmico é a amplitude dos poderes e das atribuições do Comitê Gestor, que esvaziam funções de governadores e prefeitos e geram “passeio” dos recursos dos estados e municípios para Brasília, criando custos e incertezas. Até o pagamento do polêmico “cashback”, outra inovação discutível que também não é utilizada pela maioria dos países da OCDE, depende de passagem dos recursos por Brasília.

Não sabia como concluir este texto. Se com “o otimismo da vontade, ou o pessimismo da razão”, como dizia Gramsci, quando me lembrei de artigo que escrevi em 2013, recordando do clássico de Jacques Lambert “Os Dois Brasis”, o moderno, dinâmico e urbano, e o outro, arcaico, agrário e subdesenvolvido. Referia-me, então, ao Brasil virtual, já bastante informatizado do ponto de vista da burocracia fiscal, e o Brasil real, onde nem a cobertura da Internet havia para permitir sua generalização.

Agora considero que temos dois sistemas tributários: o virtual, da EC 132/23, e o real, representado pela realidade de grande parte do país, e parcela significativa das empresas. Parafraseando Lambert, o sistema tributário ideal dependerá de que o virtual prevaleça sobre o real, ou como dizia Gramsci, “o velho que não morreu dê lugar ao novo que não pode nascer”.   

“Tudo o que eu digo parece óbvio para mim. Para quem acha que já sabe tudo, parece ridículo.” (A D Dorneles)

IMAGEM: Freepik

Fonte: Diário do Comércio