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A promulgação da Emenda Constitucional 132/23 em 2023 foi celebrada como um marco na busca por uma reforma tributária que simplificasse e tornasse mais justa a estrutura fiscal do Brasil. Contudo, a rápida sequência de eventos que culminou na aprovação do Projeto de Lei Complementar 68/2024, documento volumoso e complexo, aprovado em tempo recorde [1], levanta sérias questões sobre a legalidade, estabilidade e previsibilidade, tão essenciais ao ambiente econômico nacional.

Enquanto a alíquota de referência de 26,5% para o IBS e a CBS é apresentada como um mecanismo de segurança jurídica, os detalhes do texto do PLP 68/2024 revelam latentes mudanças que podem comprometer os pilares da reforma. A possibilidade de revogação ou diminuição das alíquotas reduzidas de 30% e 60% em 2031, especialmente para setores estratégicos da economia, introduz uma variável de incerteza que contraria a estabilidade necessária para que empresas e investidores planejem suas atividades de maneira segura e eficaz.

Neste contexto, é crucial analisar não apenas as promessas, mas também as implicações práticas dessas medidas para o futuro econômico do país. Este artigo explora os desafios e aberturas interpretativas do PLP 68/2024, questionando se a alíquota de referência prevista no artigo 467 do PLP realmente fornece o ambiente seguro e previsível tão esperado pelos contribuintes e pela economia brasileira ou se revela uma verdadeira imperfeição.

Ideia da alíquota de referência: hipotética segurança jurídica

A função de uma alíquota de referência é nortear e limitar a carga tributária, servindo como um mecanismo de segurança em um ambiente de constantes alterações, como o de uma reforma. Por essa razão, muitos tributaristas defendiam que essa previsão estivesse, inclusive, na Constituição, o que nos parece exagerado.

O mecanismo veio na lei complementar e, com uma leitura atenta do PLP 68/2024, demonstra que a alíquota de referência fixada em 26,5% está vinculada à estimativa de arrecadação tributária para os períodos entre 2026 e 2030. Assim como lemos o §11, incisos I a III do artigo 467 do PLP 68/24, com a seguinte redação:

“Art. 467 (…)

§ 11. A primeira avaliação quinquenal será realizada com base nos dados disponíveis no ano-calendário de 2030 e poderá resultar na apresentação de projeto de lei complementar pelo Poder Executivo, com início de eficácia para 2032, a ser enviado até o último dia útil de março de 2031, observado o seguinte:

I – serão estimadas as alíquotas de referência de IBS e CBS que serão aplicadas a partir de 2033, considerando-se os dados de arrecadação desses tributos em relação aos anos de 2026 a 2030;

II – se a soma das alíquotas de referência estimadas de que trata o inciso I deste parágrafo resultar em percentual superior a 26,5% (vinte e seis inteiros e cinco décimos por cento), o Poder Executivo federal encaminhará projeto de lei complementar ao Congresso Nacional, ouvido o Comitê Gestor do IBS, propondo a diminuição das reduções de alíquotas de que tratam os arts. 122 e 123 desta Lei Complementar;

III – a diminuição das reduções de alíquotas de que trata o inciso II deste parágrafo poderá ser linear ou diferenciada por produtos ou setores. (…)”

Isto é, caso a arrecadação resulte em um percentual superior ao estimado, ou seja, se arrecadar mais do que os 26,5% previstos, deverão ser propostas diminuições nas “reduções de alíquotas de 30% e 60%” para manter os níveis de arrecadação. Em outras palavras, se em 2031 for comprovado que, durante o período de transição, a arrecadação excedeu a estimativa inicial com base na alíquota de referência, as concessões de alíquotas diferenciadas (reduzidas) para setores estratégicos da economia deverão ser revogadas para retornar a carga de tributação média dos anos anteriores.

Subsidiariamente surgem três questões:

Os estudos demonstram que a alíquota do IBS e CBS será maior ou menor que os 26,5%?

Estudos técnicos da Receita Federal publicados pelo governo demonstram que, em média, a carga tributária brasileira sobre o consumo alcança 34,4% [2], um percentual significativamente acima da alíquota de referência de 26,5% estabelecida pelo PLP 68/2024. Defensores do projeto argumentam que a alíquota menor se deve às vantagens que a implementação do IVA Dual pode gerar na economia, possibilitando que, com base em um sistema mais informatizado, menos regressivo e com maior respeito a neutralidade, uma redução na alíquota seria passível de manter a arrecadação necessária.

No entanto, tais afirmações, embora possam parecer verdadeiras à primeira vista, carecem de uma análise crítica detalhada. Entre 2026 e 2030, lidaremos com a complexidade de dois sistemas tributários concomitantes, com a vigência de nove tributos sobre o consumo. Isso evidencia os desafios mais significativos do atual regime tributário brasileiro, exacerbados pelas potenciais questões de judicialização, que certamente surgirão.

Assim, essas previsões otimistas de redução da carga tributária e aumento da eficiência fiscal podem parecer excessivamente otimistas, especialmente durante esse período de transição. É improvável que colhamos os benefícios plenos almejados pela reforma tributária nesse cenário complexo de transição.

Outro ponto importante a considerar são os estudos recentes do governo, que, embora não amplamente divulgados, foram mencionados pelo ministro da Fazenda logo após a aprovação do texto do PLP na Câmara dos Deputados. Segundo o ministro, para compensar os ajustes fiscais decorrentes da desoneração das carnes, a alíquota geral do IVA dual deverá ser aumentada em 0,53%, com o objetivo de manter os patamares arrecadatórios. Ou seja, o próprio governo admite que as alíquotas em 26,5% são insuficientes para sua pretensão arrecadatória.

Assim, conclui-se que há probabilidade significativa de que a arrecadação tributária entre 2026 e 2030 ultrapasse os 26,5%. Isso implica que, conforme o § 11, II do artigo 467 do PLP 68/24, o Poder Executivo federal deverá apresentar projeto de lei propondo a diminuição das reduções de alíquotas previstas nos artigos 122 e 123 do projeto. Em outras palavras, existem relevantes razões para acreditar que os setores que foram contemplados com reduções de 30% e 60% da alíquota geral do IVA dual correm um grande risco de perderem essas reduções para que se alcance uma maior arrecadação fiscal.

Não obstante, é importante esclarecer a flagrante indeterminação presente nos termos utilizados nesse artigo. Quando falamos de “diminuição das reduções de alíquotas”, podemos razoavelmente interpretar de duas maneiras, conforme o artigo 9 da EC 132/23: poderá haver a redução nas porcentagens das alíquotas reduzidas ou poderá haver a diminuição dos setores que se beneficiam das reduções de alíquotas.

Como fica a segurança jurídica? O gatilho para a redução dos regimes diferenciados: A troca da roda com o carro andando

 A segurança jurídica, conforme ensina Humberto Ávila, só existe quando o direito é compreensível, estável e previsível. Isto é, quando há calculabilidade do direito. Isso exige três premissas: o direito precisa ser bem compreendido para ser seguido; o contribuinte que confia no direito ontem não pode ser traído pelo mesmo direito hoje; o contribuinte deve ser capaz de prever minimamente as consequências futuras de suas ações presentes.

Contudo, especialistas insistem em destacar que o PLP 68/2024, ao introduzir inovações como a alíquota de referência do IVA dual, é um instrumento valioso para garantia da segurança jurídica. No entanto, uma análise criteriosa demonstra que esse mecanismo compromete todas as supracitadas premissas, colocando em risco a estabilidade e a previsibilidade, essenciais para um ambiente jurídico e econômico saudável.

A inovação prevista no §11, II do artigo 467 do PLP 68/24 estabelece a possibilidade de revogação das concessões de alíquotas reduzidas a setores estratégicos em 2031, caso a arrecadação exceda 26,5%. Caso isso venha a ocorrer, não haverá qualquer respeito à confiança, tampouco a previsibilidade do ordenamento jurídico. Os contribuintes dependeriam de exercícios futurológicos e de possíveis arbitrariedades. Um contribuinte que confiou no direito do presente não conseguirá prever razoavelmente as consequências de suas ações no futuro, principalmente a partir de 2031.

Explicando melhor, por exemplo, caso exceda a margem arrecadatória planejada pelo artigo 467, em 2031, os insumos agropecuários e aquícolas que contam com a redução de alíquotas de 60%, podem ser obrigados, por meio de nova lei complementar, editada pelo governo federal, a pagar uma alíquota maior (diminuindo a redução de alíquotas) ou, dependendo da interpretação do dispositivo, perder o direito à alíquota reduzida. Isso, em franca violação ao artigo 187, I da Constituição, que trata da necessidade de criação e manutenção de instrumentos fiscais de incentivo ao setor.

Conforme a redação atual, todos os setores beneficiados com reduções de alíquotas de 30% ou 60% estão sujeitos à possibilidade de alteração na carga tributária em 2031, caso essa redação do PLP permaneça inalterada. Há, nessa situação, indesejável incerteza na fixação da política fiscal.

Embora a alíquota de referência seja estabelecida sob o pretexto de segurança jurídica, as potenciais (eminentes) mudanças nas reduções de alíquotas podem impactar setores da economia que dependem da estabilidade das condições tributárias para planejar seus negócios de maneira digna, segura e eficaz. Mudanças imprevisíveis vão de encontro à expectativa essencial de estabilidade e previsibilidade.

A possibilidade de novas alíquotas diferenciadas para o IVA

A interpretação do inciso III do §11 do artigo 467 do PLP 68/24 sugere que, no caso de revogação das alíquotas reduzidas — estabelecidas inicialmente em alíquota zero, redução de 30%, redução de 60% e alíquota cheia — abriria a possibilidade de aplicar novas reduções de alíquotas de forma “linear ou diferenciada, por produtos ou setores”.

Isso implica que, além das quatro alíquotas previamente definidas pelo Congresso, outras alíquotas poderiam ser introduzidas ou ajustadas para atender às especificidades de diferentes produtos ou setores da economia. Essa flexibilidade permite uma resposta adaptável às necessidades econômicas e pode ser vista como uma medida para equilibrar o excesso de arrecadação, ajustando ou revogando as alíquotas reduzidas dos setores já contemplados na EC 132/23.

No entanto, apesar de parecer uma solução vantajosa e conveniente para o Fisco, permitir tais adaptações pode comprometer ainda mais os pilares fundamentais desta reforma tributária, que são a simplificação e neutralidade. Quando as alíquotas são ajustadas de forma diferenciada por produtos ou setores, há o risco de distorções na alocação de recursos e na concorrência entre mercados, principalmente considerando os atores com maior força política.

Setores beneficiados por alíquotas reduzidas podem adquirir vantagens competitivas artificiais em relação a outros menos favorecidos, portanto, devem ser evitadas ao máximo alíquotas e regimes diferenciados além dos já existentes. Desde o início da reforma, essas premissas[3] [4] foram defendidas como fundamentais para sustentar o crescimento econômico do Brasil, mas, ao longo do tempo, esses princípios foram sendo ligeiramente distorcidos.

Portanto, ficam duas conclusões.

  1. Criar novas alíquotas diferenciadas ou revogar benefícios concedidos a setores chave da economia não parece ser a melhor solução para a evolução do sistema tributário brasileiro, principalmente considerando os dispositivos constitucionais que tratam da necessidade de fixação de regimes fiscais favorecidos para alguns setores, como o artigo 187, I da Constituição;
  2. A alíquota de referência da maneira com que foi proposta, ao invés de proporcionar segurança, traz consigo instabilidade e insegurança.

Diante desse cenário, concluímos que a “trava” imposta pelo PLP ainda carece de maiores debates e aprimoramento no Senado, sob o risco de indesejáveis surpresas já no próximo ano de 2031, mediante diminuição da redução de alíquotas de relevantes setores da economia brasileira.

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Fonte: Conjur

Referências:

[1] O projeto de Lei Complementar 68 de 2024 é composto por 366 páginas e foi publicado na quarta-feira, 10 de julho de 2024, às 19h39, contudo, surpreendentemente aprovado na Câmara dos Deputados no dia seguinte. Em menos de 24 horas, foram aprovadas 46 emendas, ainda que parcialmente, ao texto original, além de mais de 800 sugestões de alterações analisadas. Após as alterações o projeto chegou nas 507 páginas.

[2] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/estudos/8-8-23-nt-mf_-sert-aliquota-padrao-da-tributacao-do-consumo-de-bens-e-servicos-no-ambito-da-reforma-tributaria-1.pdf

[3] FERREIRA, Pedro Cavalcanti; DEL ALIBERA, Bruno R.; GOMES, Diego B.; SOARES, Johann. Tax reforms and network effects. Rio de Janeiro: FGV EPGE, 2022. Disponível em: https://biblioteca- digital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/32766/fgv-epge-ensaio-economico-830.pdf?se- quence=1&isAllowed=ya. Acesso em: 02 jun. 2024

[4] Tax reforms and network effects. Rio de Janeiro: FGV EPGE, 2022. Disponível em: https://biblioteca- digital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/32766/fgv-epge-ensaio-economico-830.pdf?se-quence=1&isAllowed=ya. Acesso em: 02 jun. 2024