Com a publicação da Portaria nº 1.419/2024, o governo federal promoveu uma mudança relevante — e, para muitos, precipitada — na Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), impondo que todas as empresas passem a gerenciar formalmente os chamados riscos psicossociais.
A norma exige que sejam identificados, avaliados e prevenidos fatores como metas excessivas, jornadas prolongadas, assédio moral, conflitos interpessoais, ausência de suporte e falta de autonomia no trabalho. Em teoria, a medida visa proteger a saúde mental dos trabalhadores. Na prática, gerou um cenário de insegurança jurídica e operacional que deixou o setor produtivo às cegas quanto ao que, de fato, é exigido — e como demonstrar conformidade.
A proposta de incluir o cuidado com a saúde mental dentro do escopo da segurança e saúde ocupacional é legítima. Contudo, sua implementação normativa ainda peca justamente onde mais deveria ser precisa: na definição de critérios técnicos, parâmetros objetivos de avaliação e limites claros para a atuação dos Auditores Fiscais do Trabalho.
Atualmente, o texto é genérico, delega amplas responsabilidades às empresas, mas oferece poucas respostas práticas sobre como cumpri-las. A ausência de diretrizes padronizadas abre margem para diferentes interpretações — inclusive entre os próprios órgãos de fiscalização — e pode gerar um aumento expressivo de autuações, judicializações e danos reputacionais.
Em vez de trazer segurança jurídica, a nova NR-1 projeta as empresas em um cenário nebuloso, no qual cada passo pode ser contestado — e cada omissão, punida. É nesse contexto que este artigo propõe um guia prático, direto e realista para organizações que desejam agir com responsabilidade, reduzir riscos e estruturar um modelo de gestão coerente, mesmo diante de uma norma que ainda carece de maturidade regulatória.
Estrutura mínima recomendada: o comitê multidisciplinar
O primeiro passo é a criação de um comitê interno de saúde mental com perfil multidisciplinar. A participação de representantes do RH, jurídico, saúde ocupacional, lideranças e, quando possível, dos próprios trabalhadores é fundamental. Empresas que já possuem CIPA ou SESMT devem envolver esses grupos, fortalecendo a abordagem preventiva e participativa.
Esse comitê deve ter caráter permanente, com reuniões periódicas e pautas definidas, tratando o tema de forma contínua e estratégica — e não apenas como reação a crises ou fiscalizações iminentes.
Diagnóstico: mapeie o que já existe e avalie o que funciona
Paralelamente, as empresas devem mapear todas as iniciativas já implementadas que impactam a saúde emocional dos colaboradores. Programas de ginástica laboral, atendimento psicológico, apoio à parentalidade, retorno assistido após afastamento e espaços de descompressão muitas vezes já existem, mas raramente são integrados a uma política estruturada.
É essencial identificar: o que está sendo feito? Está funcionando? Os gestores conhecem e promovem esses recursos? A resposta a essas perguntas orienta o fortalecimento do que já dá certo — e o ajuste do que não gera resultado.
Use dados para identificar áreas críticas
A análise de indicadores concretos é o caminho mais seguro para identificar áreas mais expostas a estresse, pressão e adoecimento. Equipes comerciais, setores de atendimento e turnos de operação contínua devem ser avaliados com base em dados como rotatividade, absenteísmo, afastamentos e reclamações internas.
A prevenção é eficaz quando aplicada onde o problema realmente está. Sem essa base, qualquer ação será superficial.
Reforce os canais de denúncia e amplie sua efetividade
A nova NR-1 exige que as empresas possuam um canal funcional para denúncias relacionadas a riscos psicossociais. Isso implica criar um espaço seguro para que os trabalhadores possam relatar casos de assédio, abuso ou ambientes tóxicos.
Mais do que um formulário, o canal deve ter fluxo bem definido, garantia de sigilo, proteção contra retaliações e respostas claras. Ignorar essa estrutura é abrir mão da principal ferramenta de alerta precoce.
Atualize políticas internas e códigos de conduta
Muitas empresas já possuem códigos de ética e políticas de conduta, mas estes raramente abordam de forma explícita a saúde mental. Atualizá-los — ou criar documentos específicos — é um passo relevante para demonstrar comprometimento institucional e orientar lideranças sobre como agir.
Capacite lideranças para prevenir riscos
Um líder despreparado pode comprometer todo o esforço da empresa. Investir em treinamentos sobre assédio moral e sexual, gestão de conflitos, comunicação não violenta e respeito à diversidade é parte da construção de uma cultura organizacional saudável.
Esses treinamentos devem ser periódicos e integrar a jornada de desenvolvimento das lideranças.
Avalie o histórico de afastamentos por transtornos mentais
Analisar os dados dos últimos cinco anos pode revelar padrões, sazonalidades ou problemas crônicos negligenciados. Essas informações ajudam não apenas na formulação de ações corretivas, mas também são essenciais em casos de fiscalização, demonstrando que a empresa age com base em evidências.
Planeje ações coerentes com a realidade do seu negócio
Com um diagnóstico em mãos, é possível desenvolver programas de qualidade de vida com coerência. Incentivo à prática de atividade física, flexibilização de horários, apoio psicológico e ações de bem-estar são algumas possibilidades — desde que estejam alinhadas à cultura da empresa. Benefícios superficiais, desconectados da realidade, podem ter efeito contrário e gerar frustração.
Inclua os riscos psicossociais no PGR e revise o PCMSO
A NR-1 obriga que os riscos psicossociais façam parte do inventário de riscos ocupacionais e que haja um plano de ação específico. O PCMSO deve ser atualizado com base nesse inventário, refletindo as ações previstas e os acompanhamentos médicos necessários.
Embora não exista obrigação legal de manter psicólogos na equipe, contar com especialistas — ainda que como consultores — é recomendável para garantir fundamentação técnica aos registros e relatórios.
Prepare-se para auditorias e fiscalizações
Toda a estrutura construída precisa ser documentada. Empresas devem estar prontas para apresentar, de forma rápida e organizada, registros como:
- inventário de riscos atualizado,
- plano de ação,
- atas do comitê,
- evidências de treinamentos,
- histórico de denúncias e providências adotadas.
A falta de organização, nesse ponto, pode representar prejuízos financeiros e à reputação da marca.
Conclusão: antecipe-se ao invés de reagir
A nova NR-1 foi implantada sem que empresas e o próprio sistema de fiscalização estivessem totalmente preparados. Ela exige muito, mas ainda oferece pouco em termos de clareza técnica e orientação prática. Transfere às empresas a responsabilidade por interpretar, executar e justificar obrigações que seguem em evolução.
Diante disso, não se trata de escolher entre cumprir ou não cumprir — mas entre reagir ou se antecipar. E a pergunta que permanece é: sua empresa vai esperar a multa chegar para começar a agir?
Fonte adaptada de Portal Contábeis